CAPÍTULO 1
BASEADO NUMA HISTÓRIA REAL
Cidade de Passo Fundo, Sul do Brasil
Noite de sábado 07 de Agosto de 1971, 22 horas, Orgel Fischer de Almeida, o alemão e terceiro dos meus irmãos mais velhos, com dezoito anos de idade, conversava na sala de casa com a nossa mãe e insistia com ela, para entregar-lhe uma arma de fogo que ele havia comprado de um policial militar e que iria revendê-la por um preço maior, num baile em que mais tarde ia ir com os seus amigos que já o esperavam num carro, em frente de casa. O tal baile seria no CTG Osório Porto, situado na Rua Independência 1968, não muito distante de nossa casa e o Orgel era um verdadeiro tradicionalista. Eu assistia aquela cena toda, deixando de prestar atenção na TV e percebia minha mãe contestando o tempo todo, dizendo que não lhe entregaria a arma, uma vez que já havia tirado dele, com medo que fizesse uma loucura. Mas a insistência por parte de meu irmão foi tanto que, num momento de fraqueza e como que hipnotizada pelas palavras jogadas diretamente em sua mente já um tanto judiada pelo tempo, a mãe entregou-lhe o objeto que tanto pedira. Junto, ele solicitou também uma bala, um único projétil que mais tarde nos causaria um desmoronamento em nossa família. Essa bala, segundo meu irmão, seria para experimentar o revólver e mostrar que estava em boas condições de uso, para o possível comprador. Minha mãe entendendo que aquelas declarações eram a mais absoluta verdade e com seu tenro coração aflito, atendeu o seu pedido. Após isso, os dois ficaram parados um em frente ao outro por uma eternidade talvez e percebi que o Orgel olhava longamente para o rosto de minha mãe, sem nada se falarem. Olhou bem em seus olhos, tentando dizê-la que aquele era o último momento em que estariam juntos, pois ele parecia bem decidido e em seguida, calado e sem se despedir de mim e nem me prometendo levar-me no cinema, no domingo à tarde, ignorou a minha presença e saiu entrando no táxi que o aguardava junto a alguns amigos seus, seguindo o que ele próprio havia predestinado, desaparecendo no horizonte escuro de uma feia noite de inverno, partindo para sempre.
Pensei até que ele poderia estar zangado comigo, mas sei que nada lhe fiz, enquanto minha mãe ficou por alguns momentos na porta de casa olhando o automóvel que o levava até o destino final. E parecia que ela não somente percebeu o frio que fazia lá fora, havia provavelmente um aviso funesto e ao entrar, fechou a porta de casa, mostrando em sua face, um rosto diferente de todos aqueles que eu já tinha visto. Um olhar muito triste, pesaroso como qual, adivinhando o que realmente podia acontecer e que fez o meu pequenino coração, de irmão-caçula, estremecer. Meu pai deitava cedo e meus irmãos saíram dar umas voltas com seus amigos. E para nós, crianças, já era tarde, muito mais de 22 horas, quando fomos deitar. Demorei um tempo para dormir, pois da minha cama eu escutava os passos da pobre mãe que andava de um lado para outro, com poucas luzes da casa acesas e que faziam o meu limitado coraçãozinho de apenas dez anos de idade, bater descompassadamente. Por eu ser ingênuo ainda, não conseguia entender que, na verdade, eu estava nervoso e muito angustiado, pensando na preocupação de minha mãe que eu tanto amava e por vê-la acordada, provavelmente em lágrimas, numa madrugada de insistente chuva fina e gelada, parecendo neve. Eu não estava entendendo que mal havia em o Orgel sair para se divertir com os seus amigos e minha mãe ficar naquela inquietação, mesmo porque, meus outros irmãos também faziam isso. Finalmente adormeci, sem imaginar que o dia seguinte, enquanto muitas famílias homenageariam seus papais com festas e presentes, para nós seria um dia fatídico e que talvez fosse melhor que nunca mais amanhecesse.
Domingo, 08 de Agosto de 1971, data em comemoração aos pais e nessa hora, durante o almoço normalmente o clima fica mais festivo, mas não era o que estava acontecendo conosco. Havia um silencio e apenas a TV quebrava aquela monotonia. É que na verdade, o Orgel não estava junto e a mãe parecia não estar muito legal. Entreguei um cartão de felicidades para o meu pai que eu havia feito na escola e ele guardou consigo e logo depois que acabou de almoçar, meu pai saiu para tocar umas músicas de gaita na casa de alguns amigos seus. Ficamos apenas minha mãe, meus dois irmãos, três sobrinhos meus e eu, naquela tarde fria de inverno. Porém, alguma coisa estava errada nesse dia, não era como as outras tardes. Um clima de morte pairava no ar. Minha mãe estava inquieta pelo fato de meu irmão Orgel não ter vindo para casa. Ele costumava fazer isso, nos finais de semana e ao anoitecer, voltava, mas minha mãe estava muito diferente e dava até para perceber isso. Cada carro que parava em frente de nossa casa, ela corria olhar pelas janelas, na esperança de ser o seu filho chegando, as vezes com uma grande ressaca e trazido pelos seus amigos. O PM amigo do Orgel passou pela frente de nossa casa à tarde, quando vi minha mãe lhe indagando: “…o senhor não viu meu filho?” -Ele respondeu então, que estiveram no baile juntos, mas que ao retornar para casa, o havia deixado lá em companhia de seus amigos. Então minha mãe lhe falou que talvez o Orgel estivesse dormindo em um quarto que possui no centro da cidade, “… pois as 22 horas de ontem, meu filho passou por aqui… e pediu para que eu lhe alcançasse uma blusa e uma arma. Então me assustei, mas ele pediu para não me preocupar pois iria com o senhor, no baile do Osório Porto.” Enquanto isso, meus outros dois irmãos, o mais velho que é um jovem adulto de 23 anos de idade e um outro, adolescente de 16 anos, tentavam tranquilizar minha mãe e depois saíram por aí. Meu pai antes de sair para passear, nada disse sobre o fato, pois já era rotina meu irmão demorar para voltar, quando ia em festas. E se, eu, uma criança pude sentir no ar quando algo parecia não estar bem, naquele dia eu não consegui me concentrar nas minhas brincadeiras, com três netos de meus pais que moravam conosco, filhos da minha irmã mais velha dos meus irmãos. Eles eram crianças também, portanto, meus companheiros para brincar em casa.
Foi chegando o final do dia e quando eram mais ou menos 16:40, o meu irmão adolescente voltou da cidade, após andar muitas voltas de bicicleta Monark vermelha, pertencente ao Orgel e foi jogar bola na quadra de esportes da Igreja São Judas Tadeu, localizada na Rua Passo Fundo, próximo de casa onde moramos. Contudo, a noite vinha com o seu negro manto, trazendo também um pouco mais de frio e uma má noticia que deixaria mais triste ainda a nossa morada, que nunca mais seria um lar-doce-lar. Deveriam de ser 17:00 horas, mais ou menos, quando eu brincava com um carrinho no pátio feito de tijolos maciços e que estavam úmidos pela chuva da noite passada, em frente de casa. Foi então, quando avistei um homem estranho que surgiu no portão e chamando-me de guri, pediu para falar com minha mãe. Ela, de repente como num passe de mágica, ali apareceu, sem que eu tivesse necessidade de correr até dentro de casa e avisá-la. E assim, quando aquele senhor viu minha mãe começou a falar num tom baixo e devagar, como que não conseguindo se expressar muito bem, afirmando que meu irmão Orgel se encontrava hospitalizado, em estado grave, por ter ingerido muita comida e bebida alcoólica no jantar dançante em que ele tinha ido, no CTG, sábado, àquela mesma noite em que levara a arma para vender. Em meu pequeno mundo de criança, entendi serem verdadeiras as palavras que ele dizia, fazendo mais uma vez o meu coração puro, estremecer. Mas se fosse só isso o que o destino havia reservado para meu pai comemorar o seu dia, pois mesmo estando no hospital, estava vivo e enquanto há vida, há esperança. Segundos depois, eu descobriria que aquele homem estava mentindo e minha mãe provava isso, pois bastante nervosa, no pátio de casa onde eu me encontrava, chorava e cobria o rosto com as suas santas mãos, pois naquele momento uma tristeza imensa entrava com violência em seu coração e em prantos ela falava para o homem desconhecido que ainda estava ali, que ele a enganava e que na realidade, meu irmão Orgel estava… morto! Morto? Pensei: como pode? E sentindo uma sensação de arrepio em meu corpo pelo susto do que acabara de ouvir e já pressentindo o choro que estava chegando até mim, olhei em seguida para o homem gordo da má notícia e refleti: não mãe, o Orgel está no hospital, por que não ouve o que fala este estranho? Então, percebi que, calado e de cabeça baixa, o sujeito que deu início a toda nossa desgraça que apenas começava, retirava-se devagar, seguindo o seu destino. Minha mãe chorava muito e pude notar que uma vizinha se aproximou dela, pedindo calma.
Naquele momento meu mundo de fantasias, de sonhos, de príncipes e fadas-madrinhas, foi invadido por um inimigo terrível e destruidor, ainda por mim desconhecido. Porém, possivelmente não querendo eu acreditar no homem mau, aceitei como que fosse uma brincadeira e que meu irmão havia se escondido ali por perto, atrás de alguma árvore e que logo ele apareceria dizendo “primeiro de Abril,” embora fosse mês de Agosto. Fiquei esperando e olhando para os lados, para vê-lo chegando. Mas nada! Aguardei e nada, nada mesmo. Voltei o meu olhar para minha mãe que continuava chorando e mais uma vez, senti meu frágil corpo em formação tremer e desta vez, como um terremoto que destruindo uma cidade inteira, sem piedade, mata o máximo possível de habitantes. Foi então que percebi que ninguém estava se divertindo e acreditando no pior, corri para os fundos de casa e falei para um dos meus sobrinhos, um ano mais novo que eu e que também brincava, o que estava acontecendo. Voltamos para a frente e eu continuei ali, imóvel, completamente perdido. Não conseguia compreender muito bem, só sabia que meu irmão havia morrido e isso significava não tê-lo mais conosco, não vê-lo nunca mais e nem mais ouvir a sua voz, para sempre. Os nossos passeios aos domingos à tarde no cinema e as nossas brincadeiras, passariam a ficar só na lembrança.
E com esses pensamentos eu observava minha tão querida mãe, chorando abaladamente, me perguntava: mas afinal de contas, chorar não é coisa de criança? E foi nessa fração de tempo, que pude notar que minha mãe, gente crescida, era na realidade, tão fraca e vulnerável, quanto eu, um menino ainda e que precisava dos cuidados de um adulto, para viver. E entendendo agora aquele velho ditado que sempre ouvi os adultos falarem que noticia ruim corre depressa, vagarosamente nossa casa foi sendo invadida por vizinhos, amigos, conhecidos, que se perguntavam o que tinha acontecido. E junto ao meu sobrinho, fomos correndo avisar uns parentes que moravam perto de nós, na Rua Capitão Araújo, à pedido de minha mãe e tão logo voltamos de carro juntos com nossos tios, já se encontravam muitas pessoas em nosso destruído lar. Alguém avisara meu pai e ele também já se encontrava ali, atordoado pelo acontecido e com seus olhos vermelhos, chorava baixo, acompanhado da família que ele havia visitado. E ao fim daquela tarde foi assim, nem risos, nem brincadeiras, nada! Só a desolação que acabara de invadir nosso lar que parecia ser feliz. Parentes chegavam consternados, não acreditando que tudo aquilo era real.
Eu ouvia o som que se produzia da boca das pessoas, uns falando baixo, outros num tom mais alto que, meu irmão fora encontrado morto, no porão do CTG Osório Porto, vítima de sua própria arma que ele havia levado para vender. O meu outro irmão, adolescente, veio da rua já tarde, confirmando para a nossa mãe aquela triste informação, pois ele foi quem reconheceu o corpo, junto a polícia, ainda no CTG, quando foi avisado por amigos seus, na partida de futebol onde ele estava jogando, que um cadáver havia sido encontrado e que provavelmente era o seu irmão. Enquanto isso, eu já sentindo a dor da separação, via pessoas chorando, lamentando-se e na verdade, ninguém aceitando esse fato. Meu irmão morto, era querido por todos e eu chorava muito, olhando para os que também estavam em prantos, pela triste perda. E tudo o que eu observava ao meu redor, parecia não ter mais vida e o mundo que eu achava lindo, havia agora se tornado horrível, como se tudo ficasse em preto e branco e a sensação sentida é que eu também estava sendo consumido pela morte, capaz até de perder minha vida, antes mesmo da chegada da madrugada, quando a noite aos poucos vinha trazendo com seu manto negro, trevas e frio, mantendo assim, um aborrecimento muito maior, pois a dona morte e a dona noite, são amigas e trabalham juntas. E nesse final de dia que já havia chegado ao fim, não brinquei, nem mais sorri, não tive devaneios e além disso, tudo estava confuso e ninguém parecia se entender.
E novamente, vozes de pessoas tristes, diziam que o corpo já se encontrava num tal de IML, palavra estranha que eu nunca ouvira falar e nem sabia do que se tratava, enquanto o vento uivante e sem calor, insistia em assobiar nas janelas de casa, como que vindo nos aterrorizar e nos preparar para o pior. Durante a madrugada, a temperatura baixou, chovia e trovejava muito, aumentando o horror daquela noite interminável e o que se dava para entender, é que a tempestade não tinha nem um pouco pena de nós. O ribombar que vinha dos céus, após cada relâmpago que clareando forte como dia, faziam as trevas se dissiparem por alguns segundos, parecia como sons de uma guerra muito distante, travada lá na fundação do mundo, quando espíritos do bem e do mal lutavam pelo poder absoluto. E nessa noite, que seria a mais longa de nossas vidas, o rumor daquela tão remota luta armada, vinha até nós, onde o poder do mal reivindicava a autoria do suicídio de meu irmão, contabilizando as suas maldades na Terra. Mas o domínio e a força do bem, que são maiores e vitoriosas e que estão muito acima das tempestades, prometiam trazer o Orgel novamente à vida, como fez com Lázaro. Será o maior espetáculo de todo o Universo: a aguardada Ressurreição para todos os seres humanos mortos (Atos 24.15), quando a nossa identidade será mantida (Daniel 12.2-3), sendo na futura condição de imortal, o que somos agora, no modo mortal que vivemos. Nós é que escolhemos o Céu ou o inferno para habitar e eu tão pequeno ainda, já tinha ciência de muito assunto espiritual, pois desde tenra idade, já era levado pela família em cultos evangélicos.
Mas o conhecimento dessas verdades, não me faziam sofrer menos e agora, após ter sido colocado para dormir e não conseguido e agoniado, levantei-me e vestindo por cima do pijama, um casaco preto enorme do tipo sobretudo que quase alcançava o chão, choro, olhando para fora da janela da varanda que estava aberta e com a temperatura trazendo em meu rosto uma aragem gélida, procuro ver na escura rua, alguém que pudesse ser meu irmão que se fingiu de morto, voltando para nossa casa, onde achavam-se muitas pessoas, quem sabe o Orgel fugindo de algum cativeiro de alguém que o havia prendido. Percebi que nossa moradia se encontrava vulnerável com suas portas e janelas todas abertas, bem ao contrário do que minha mãe costumava fazer, pois ela fechava a casa cedo da noite. E enquanto chás e cafés estão sendo servidos eu ali, acordado, como se fosse um adulto, em plena noite fria de inverno, sem que alguém se importasse em me obrigar a deitar, já que era bastante tarde para que eu ficasse sem ir para a cama. Há muito se passavam das 24 horas. Pensei: eu até poderia, se quisesse, sair porta afora, pelas ruas da cidade que ninguém notaria a minha falta. Mas então, por que não desaparecer para sempre? Partir sem destino e quem sabe, encontrar uma nova família, onde não houvesse alguém morto para chorar. Não, não! Que bobagem a minha, afinal eu amava muito minha mãe e olhando agora para ela, sabia que não poderia deixá-la naquele momento tão injusto que o destino lhe presenteara e com certeza ela ia sofrer por minha causa também e além do mais, eu pertenço a essa família e medroso como sou, onde poderia ir? Só se eu morresse no lugar do Orgel, para que ele voltasse ao convívio do lar, puxa, aí sim seria uma boa. Mas como todos tem a sua hora…
E enquanto eu refletia na minha fuga, olhava para fora de casa, para a noite que parece ser tão misteriosa, ocultando segredos na escuridão, perigos, pessoas com más intenções. Como então, sair caminhando à toa? E o medo, normal em todas as crianças e que aparece inclusive até mesmo em nossas brincadeiras, nos deixando com pavor? E, se porém, o Orgel aparecesse, fazendo uma brincadeira do tipo “peguei um bobo na casca do ovo?” eu não ia estar ali para vê-lo e com certeza o culpariam pelo que pudesse me acontecer. Graças a Deus, que fiquei junto à família e nem tinha como sair, pois durante toda a noite choveu bastante, o que desgraçadamente tornou todo esse episódio muito mais triste. E como o tempo é o nosso maior inimigo e não descansa, na medida em que aproximava o dia, meu espírito quebrantado, sofria em saber que logo mais tarde, teríamos que enfrentar todo um velório, algo ainda ignorado para mim e que seria realizado na Igreja Católica São Judas Tadeu, no bairro Luiza, onde moramos e que meu finado irmão tinha sido presidente do Grupo de Jovens da referida capela.
Mas ao passo que, as horas iam completando o ritual de sempre seguir em frente e não deter o tempo, trazendo o novo dia que se aproximava, eu não conseguia parar de refletir, com a minha mente perturbada, no que tinha ouvido minha mãe falar, durante a tarde, quando em meio a muitas lágrimas, afirmava que o filho que estava morto, era o que ela mais amava na vida. Eu chorava pela morte de meu irmão e também em saber que nunca fui amado por minha mãe. Se ela não gostava de mim, por que então me fez nascer? Meu pequenino coração infantil, afligia-se por uma resposta, mas eu sabia que aquela não era a hora de perguntar.
Segunda-feira, 09 de Agosto de 1971. São dez horas da manhã. Uma de minhas primas, que sempre a chamei de tia, filha da irmã de meu pai, acompanhou a enlutada mãe, que já se vestia de preto, rumo a Igreja do bairro. Eu ia junto com as duas peregrinas desta terra, que choravam pelo caminho, pois moramos na Rua Dez de Abril, apenas poucos duzentos metros de onde se encontrava a cena que nunca mais esqueceria. Quando chegamos a esquina e dobramos a esquerda junto ao vento frio que em teimosia não nos abandonava, congelando as tristes lágrimas que já começavam a rolar em nossas faces, avistei a Igreja e novamente um tremor abalou meu coração. Na medida em que nos aproximávamos, minhas pernas pareciam não mais poderem sustentar meu pequenino corpo. Olhava para minha mãe, nunca a tinha visto assim e minha tia que choravam, enquanto limpavam seus olhos com um lenço. Meu Deus, eu me perguntava: será que nenhuma pessoa vai aparecer para dizer que tudo isso é uma brincadeira? Possivelmente eu esteja dormindo e tendo um mau sonho, tipo aqueles de terror que a gente quer acordar, mas que, por instantes, não consegue. Minha mãe e com certeza, nem outra mãe do mundo, merece ver um filho morto. Tudo aquilo era um pesadelo para mim, tipo um filme triste, mas infelizmente real. Não era uma história que alguém me contava e também não era um sonho, era um fato que eu estava vivendo.
Alguns vizinhos nos olhavam de suas casas e comovidos, mostravam-se impotentes diante do ocorrido e imóveis, nada diziam, só sabiam que ali, na nossa família, a destruição havia chegado e …matado. E quando entramos na Igreja, um lenço grande e preto em forma de laço, estava afixado à parede do lado de fora, para ser visto pelas pessoas, dando a entender que a morte maldita, reinava triunfante.
Naquele momento, ao passar pela porta, avistei lá dentro o caixão de defunto, onde meu irmão morto deveria estar deitado. Ainda não haviam pessoas lá: só nós! Minha mãe aproximava-se bem depressa daquele ataúde e em passos largos, afastava-se rapidamente de mim e eu a fiquei olhando por alguns segundos, vendo-a como que desaparecendo num longe horizonte. Queria dizer para ela não ir e não olhar, esquecendo tudo o que acontecia, mas sei que não podia ser assim e neste instante eu assisti algo estarrecedor que, creio eu, o destino, por eu ser criança, poderia ter me poupado. Foi uma cena da fragilidade humana e que lesou meu cérebro para sempre: presenciei minha pobre mãe chorando e clamando pelo filho inerte, parecendo descontrolada, abraçada em seu caixão. Gritava e chamava pelo nome do filhinho que ela mais amava. E eu, como que cambaleando e devagar, com muito medo do que poderia ver, me aproximei chorando daquela caixa de madeira estranha, de uma cor meia rúbida, colocada sobre uma mesa, com quatro velas acesas na cabeceira e um crucifixo gigante, mostrando Jesus pregado nela e muitas flores. Realmente falando, eu não queria ver. Segui meus passos em frente, como alguém que estava aprendendo a andar e pensava: quem sabe uma última tentativa de me perguntar se tudo isso que estava acontecendo, não passava de um truque, ou estou dormindo em casa e sonhando. E me aproximando do caixão, implorava com o poder de minha mente: “não é ele, não é ele, não é ele…”
Parei e olhei para trás, para a porta de entrada, pois queria ver o Orgel chegando e sorrindo, dizendo que tinha levado a brincadeira longe demais e que estava vivo e que nos queria pedir desculpas. -“Mãe, eu brinquei, veja estou vivo, não chore. Cadê o pai? Trouxe o seu presente! Minha tia querida, não chore. Everton, meu queridinho irmãozinho, estou aqui, venha me abraçar e vamos brincar,” – Mas nada! Então voltei meu olhar para a frente, para a realidade e com mais uns passos tensos pensando que talvez pudesse ser um boneco parecido com o meu irmão que estivesse ali deitado e que facilmente enganaria a todos nós, cheguei diante do que igualmente me deixaria sem vida. Olhei para o defunto que estava dormindo e ao som da sinfonia moralmente melancólica, que vinha da ternura de uma pobre mãe destruída, vi o que jamais deveria ter visto e estupefato, naquele momento nem percebi que a escola da vida me ensinava sobre o salário do pecado que cometemos.
E diante do Orgel deitado, notei que não havia como fugir da prova de que ele estava mesmo morto. Meu irmão que tanto carinho tinha por mim, meu irmão que lembro jamais de ter me batido, estava ali, com os olhos fechados, imóvel, com as mãos postas sobre o peito. Pensei em gritar, correr para fora da Igreja e desaparecer. Minha mãe sofria exageradamente e isso era demais para mim. Jesus todo poderoso do Céu, faça algo depressa, acorde o meu irmão, assim como nos criastes, sendo o Autor da Vida, não quero ver minha mãe chorando tanto, é um pecado essas lágrimas que rolam de seus olhos cheios de amor. Olhei para a minha tia, vi a sua tristeza e indaguei para o meu próprio mundo: a senhora, tia, não pode fazer algo pela minha mãe e, por que choras também? Eu, sim, choro por ser criança e como tal, nada posso fazer, mas os adultos eu sei que podem.
E se eu estivesse ali, no caixão, deitado no lugar do Orgel? Provavelmente minha mãe não sofreria desta mesma forma desolada, afinal ela não me amava. Por que eu não estou morto, então? Por que Deus levou o filho mais estimado e não me levou no lugar dele? Sabemos que o Criador não sente prazer no sofrimento humano, mas o destino de forma irônica, parece gostar de nos ver afastados de quem amamos e minha mente estava bastante confusa, naquele momento, com muitos pensamentos ao mesmo tempo. Sem o amor de minha mãe, eu não queria mais viver e não seria nada, por isso, igual ao Orgel eu também estava morto.
Eu sempre ouvi os meus irmãos dizerem, que eu não era para ter nascido e vim para este mundo sem ser desejado e até chamavam-me renegado. Muito triste, eu costumava perguntar para minha mãe se realmente era verdade o que falavam e ela, naturalmente dizia que não e que meu nascimento foi planejado com amor, mas que, pela insistência de meus irmãos, inclusive do Orgel, continuarem a me tratar como alguém que não deveria nascer, as palavras de minha mãe, nunca me convenceram e sempre entendi que ela poderia estar mentindo e acabei tendo a prova disso tudo, no velório de meu irmão, pois o Orgel era o que ela mais tinha de valor em sua vida. E sabe, aquela dor que só você sabe como dói? Então, nem vou explicar o que eu sinto nesse momento em que toda a família sofre a grande perda.
Porém instantes mais tarde, meus pensamentos em desordem, são de repente interrompidos por passos: olho para a porta de entrada e vejo a multidão que já começava a chegar. Parentes que vinham chorando, quando viam a dor que minha mãe passava. Eu que sempre os vi sorrir, agora sei que eles também choram. Meus irmãos se lamentavam o tempo todo e meu pai andava estranho e inquieto, engolindo a dor da punhalada, deixada pela cruel morte, ao levar o filho querido. Muitos automóveis com pessoas desconhecidas. Estranhas para mim! Um bom número de gurizada inconformados e muitas moças, talvez alguma namorada do Orgel, não acreditavam no que seus olhos lhes mostravam. Minha irmã, a primeira e única filha mulher de meus pais, ficou mal e precisou ser socorrida.
E assim, foi a manhã passando, com cheiro de sepulcro e o tempo foi indo carregando junto, as horas com odor de velas e perfumes de flores e a vida me ensinando da hostilidade que há em habitar este planeta. Logo seria de tarde e nem sei o que eu almocei, se é que algum de nós, almoçou.
À tarde foi muito pior que de manhã. Havia uma multidão incrivelmente enorme de gente. Eram pessoas que, talvez, vinham de curiosas e a vista disso, a imprensa, como costuma sempre fazer, são como corvos correndo atrás de carniça, não poderiam perder a oportunidade para vender mais jornais, ganhando dinheiro a custa da desgraça alheia. E enquanto sentado eu estava ao lado direito do caixão, junto com minha mãe, vi duas mulheres, um pouco já idosas, bonitas e distintas que se aproximaram de minha mãe e a abraçaram, enquanto choravam copiosamente. Provavelmente mãe de filhos mortos, ou puramente cristãs, capazes de compreender a dor que a nossa família passava e em seguida partiram, sem sabermos jamais quem eram elas. Também meus colegas de aula da quarta série da escola Antonino Xavier e Oliveira no bairro Luiza, onde eu estudava, estavam todos ali, próximos de mim, pois eles haviam sido dispensados das atividades escolares, para verem o meu irmão que dormia, coberto por um cerúleo manto. Durante todo o velório, eu fiquei ao lado de minha mãe, ora em pé, ora sentado, mas sempre ao lado daquela rainha do meu lar, rainha triste, rainha desesperada, em farrapos como mendigo, diante do fato de terem lhe roubado o trono que ela mais amava, numa tarde fria de chuva leve e constante.
Creio que anjos de Deus, registravam em escritos celestiais, todo o acontecimento e cada lágrima que se deitavam das centenas de rostos tristes que ali se encontravam e contados gota por gota, serão provas pela eternidade afora de que um dia, numa época, houve uma mãe que tinha filhos e que só queria ser feliz, mas não conseguiu o seu intento, pois o plano físico levou o Orgel amado de forma agressiva. Trouxe-lhe à vida terrena em corpo de carne, em meio as dores do parto de uma mãe que chorava de felicidade, mas que agora a matéria organizada que dava existência a esse broto, foi roubada, matando aquele ser que não mais poderá habitar esta Terra novamente (Jó 7.9) e perante o Juízo de Deus, se encontra (Isaias 43.26). E enquanto isso, as dores dessa mesma mãe é outra: a separação. E a nós, só nos restava o lamento.
Cinco horas da tarde. Cinco horas da tarde, daquela tão terrível tarde lúgubre de inverno de agosto de 1971. A mesma Igreja que via o meu irmão sempre alegre, divertido, principalmente nas partidas de futebol, típico de todo jovem que está de bem com a vida, iria assistir agora, sua partida, imóvel, carregado para um lugar que eu já tinha ouvido falar, um local solitário e tristonho, que eu ainda ignorava como era. Saí um pouco, passando pelo povo que ali assistiam a missa de corpo presente e fiquei do lado de fora, quando eram cinco horas da tarde. Deveria ter ficado junto a minha mãe e ao meu irmão que dormia, pois de repente, vi um carro todo preto, bem estranho, em forma de uma carruagem, carregado de flores e que se aproximava vagarosamente, olhando para mim e dizendo: “Sim, sou eu que vou roubar o teu irmão de você, para sempre. ” Não! Tremi de cima a baixo, assustado com o coração abalado e ouvindo repetidas vezes o que aquela imagem feia me dizia “… para sempre… para sempre…” corri até minha mãe e junto dela, olhando-a ela me falou, não como uma ordem, mas apenas um pedido, simplesmente: “Beija teu irmão.
” Então, olhei para ele morto, procurei ver bem os seus olhos que fechados não poderiam me ver e tencionei chamá-lo: pare Orgel! Diga agora que tudo foi um jogo sem graça, uma aposta perdida, talvez. Um filme! Acorde e chega de brincar Orgel, vê todo mundo está chorando, não sente dó de nossa mãe? Você não vai mesmo acordar e dizer que tudo não passou de uma novela? Ou um teste que você pensou em fazer, para ver se realmente te amavam? Vamos, meu, abra esses olhos, pois tem uns loucos lá fora, dizendo que vão te levar fechado aí dentro.
Porém parei e senti que na verdade eu estava sendo um devaneador, que me entreguei a fantasias e nesse caso, só tinha algo a fazer. Assim beijei o meu irmão, beijei o seu rosto. Agora ele abrirá os seus olhos e dirá: “surpresa. ” Mas eu senti a sua pele muito diferente, estava rígida e gelada e eu sei que isso não é comum. Eu nem tinha ideia que seria assim a tal terrível morte, gelada como um gelo. Notei que continuava saindo sangue do ferimento a bala, do seu lado direito da cabeça. Minha mãe, durante todo o decorrer do velório, limpava aquele sangue que corria grosso, com um lenço.
Os agentes funerários, os malditos agentes funerários que saíram daquela carruagem destruidora de lares, ao tentarem cobrir o caixão para levá-lo, encontraram bastante resistência por parte de minha mãe, pois aquele morto levava junto dele toda a felicidade que ela pensou que havia em nosso lar e que traria em troca, dias de angustias e saudades sem fim a partir de então. Era necessário que o Orgel ficasse com minha mãe: era seu filho gerado por ela e não podiam ficar separados. O Sistema de trabalho de Deus, o havia trazido até nós e, portanto, ninguém pode roubar a Dádiva do Senhor. E foi preciso, então, que algumas pessoas ficassem ao seu lado, tentando convencê-la e acalmá-la, para que a funerária do grupo Cogo fizesse o seu trabalho. Eu chorava muito, vendo todos meus irmãos em lágrimas e também percebendo o sofrimento que se abatera em minha mãe. Com certeza, o maior exemplo de dor, estava ali naquela pobre senhora que sabia, assim como todos, que o Orgel estava se despedindo de nós, para sempre e que não mais moraria conosco, ficando distante, restando apenas a saudade eterna e que só a sua lembrança, regará nossa mente. Meu Deus, eu pensava, como vai ser nossa vida agora? Como ficar sem ele? Por que Orgel? Por que foi embora de mim? Você nem sequer se despediu deste teu irmãozinho, quando foi àquele baile.
Carro fúnebre da Funerária cogo que levou o jovem morto encontrado no CTG Osório Porto ao cemitério.
A saída do enterro. Seguimos o triste cortejo fúnebre. Eu estava ao lado de minha mãe, sentado no banco de trás, junto também com meu irmão adolescente, num automóvel que seguia logo atrás do carro que levava o esquife com meu irmão dentro. Minha mãe sempre chorando inconformada e durante o tempo todo, desde a notícia de sua morte eu a vi assim, nesse estado lastimável. Como haviam tão grande quantidade de lágrimas naquele meigo e misericordioso olhar? E o carro fúnebre, muito estranho, deixando a morte mais triste ainda: era todo cheio de franjas ao seu redor, parecendo com uma carruagem antiga tipo daquelas de filme de Drácula com o caixão indo exposto e muitas flores coloridas, quem sabe necessárias para dizer que a morte é tão somente uma passagem para um outro mundo, onde continuamos a viver. Havia junto, uma grande coroa de flores e nela uma faixa cinza, com algumas palavras póstumas, doada pelo Colégio Marista Conceição, onde meu irmão era aluno, cursando à noite, o terceiro ano de contabilidade. Olhei para trás e presenciei que dezenas de carros seguiam o féretro numa estrada asfaltada e molhada das águas da chuva, como se as ruas e as casas, árvores, postes de iluminação, demonstrassem o seu pesar pelo acontecido e até mesmo o motor daquele carro que nos levava, parecia chorar.
Novamente, me virei para a frente e com os olhos fixos no caixão que levava o Orgel e ouvindo o triste choro de minha mãe, seguíamos adiante, para um cemitério que nunca chegava. Já tínhamos saído da cidade e o cortejo continuava. Afinal, para onde estamos indo? É preciso morar longe, depois que se morre? E assim foi durante a longa viagem que fizemos, numa tarde que agonizava triste, com negras nuvens se acumulando e a perspectiva de muita chuva.
Finalmente paramos quase em frente a uma pequena Igreja Católica, afastada de tudo, próxima ao asfalto que não tinha fim e num silêncio total. Pensei: quem vem a missa, numa Igreja onde não mora ninguém perto? Era mesmo preciso deixar meu querido irmão distante assim de nós, só porque agora ele não está mais vivo? Entramos à esquerda. Haviam alguns homens, em frente a capela, prováveis colonos que, ao nos avistarem, tiraram os seus chapéus. Perguntei ao meu irmão do meu lado o motivo desta atitude, então fiquei sabendo que esse é um procedimento normal em sinal de respeito a dor da família e também pelo falecido. Seguimos em frente, passando pelo lado daquela igrejinha que, assistindo-nos como seres humanos predestinados a morte e que enterram seus mortos, ficou a nossa direita sendo testemunha calada do nosso triste trajeto, agora numa estrada de chão, embarrada pela chuva leve. Andamos um quilômetro e meio até chegarmos na eterna morada dos mortos. E a visão daquele lugar, foi de arrepiar. Uma cidade com um aspecto de total desolação, como se não existisse Deus, num tempo acabado para sempre. Por que é preciso ser assim o nosso fim? Aliás, por que é necessário ter um fim? Quem sabe teria sido muito bom se nunca tivesse tido um começo, uma criação, de nada.
Chegada ao Cemitério São João de Bela Vista. Quando paramos em frente ao cemitério a nossa direita, tremi outra vez. Meu coração batia como louco, novamente. Jamais tinha estado num lugar como aquele antes: cheio de cruzes, flores e centenas de caixas grandes e brancas, feitas de tijolos, parecendo, algumas com casas. Depois alguém me disse que se tratavam de túmulos, jazigos e capelas, que serviam para sepultar gente morta.
Os agentes funerários, retiraram o caixão do horroroso carro preto e misterioso que insistia em balbuciar algumas palavras, me dizendo: “…para sempre…” que eu odiei desde a primeira vez que o vi, conduziram o Orgel para o local final de toda esta história que, tenho certeza, fizeram também que anjos do Céu chorassem, ao assistirem que uma santa na Terra padecia igual a Virgem Maria, aos pés da Cruz do Calvário. Eu sempre ao lado de minha mãe e enquanto sofria, vendo quem mais amo padecendo tanto assim, implorava em pensamentos ao Senhor Todo Poderoso, que fizesse o Orgel levantar de onde permanecia deitado, pois agora eu já estava convicto que tudo o que acontecia, não era uma brincadeira de muito mau gosto. Minha mãe estava ficando mais nervosa, haja visto que esse era o último momento derradeiro, depois nunca mais.
Entramos no antigo cemitério, com alguns túmulos já centenários, passando por um velho e enferrujado portão de ferro, com uma multidão nos seguindo. Chegamos em uma tumba que nos havia sido emprestada por uns parentes. Já tinha um morto lá, um tio meu que eu não conheci, casado com a irmã de meu pai. Ao abrirem o sepulcro tiveram que ajeitar melhor o velho caixão de meu falecido tio, para que então pudesse entrar o novo habitante daquele lugar frio e escuro.
Minha prima, a quem eu chamava de tia, chorava muito por ver os restos mortais de seu pai, enquanto o ataúde de meu irmão era colocado em cima da tumba, uma vez que, a abertura da sepultura era na frente, junto ao chão. Então, novamente aquele caixão vermelho escuro, foi aberto, para os últimos momentos em que veríamos nosso ente tão querido, morto por homicídio ou suicídio, pois ainda não se sabia ao certo, como ele havia morrido. A policia trabalhava no caso, mas a hipótese mais provável, é que ele se suicidou por motivos ignorados por todos nós.
O momento da abertura do caixão veio com uma tristeza geral e todos os que ali estavam, choravam compulsivamente. E eu? O que posso dizer de mim? Apenas sinto o leve vento que zumbindo em meus ouvidos, perpassava meu corpo trêmulo, gelando minha alma. Eu ouço a melodia da morte, que são somente choros e gemidos de sofrimento, como chibatadas cortantes e que reduz a pó tudo o que respira. Eu escuto passos vacilantes das pessoas que acompanham nossa dor, sobre as pedras britas espalhadas pelo chão barrento daquele lugar perdido. Eu ouço minha própria voz gritando dentro de mim, indagando: que planeta é esse, que mata quem aqui vive?
Minha querida mãe, sofrida e entregue ao holocausto, abraçava o caixão do Orgel, num dia frio, como uma pessoa debilitada mentalmente implorando para que ele se levantasse e os que ali estavam, choravam juntos visto a grande tristeza que caíra sobre o corpo desta pobre mulher. E uma cena que, jamais esquecerei e lembrarei até na eternidade: quando cobriram novamente o esquife para enfim, colocá-lo na sepultura, minha mãe ficou sobre o túmulo, ora sentada, ora querendo deitar-se e nós sofrendo juntos, impotentes diante da nossa condição de mortais, olhando-a com seus cabelos finos e compridos já tingido muitas vezes, esvoaçando, enquanto ela chamava o filho a espaços, chorando. Minha mãe tão bonita, singela, minha dita com seus retrós, lãs, crochê, tricô e costura, que deixava nossa casa tão chique, hoje, tão judiada que o Céu sentiu pena de sua dor, pelo tempo que nos destrói. O que poderia ser feito naquele momento, senão sermos atores de mais um capítulo da novela da vida real? Fica conosco nosso amado Jesus e nos dê forças para enfrentar, pois um dia o Senhor falou que “no mundo teríamos aflições” (João 16.33) e veja a angústia desta pobre mãe que diz não poder acreditar no que estava acontecendo, enquanto bebia do cálice da ira da morte que tomou o seu filho amado.
Minha mãe, anos atrás, resolveu obedecer ao mandamento do Senhor Deus e casar, deixando de ser solteira e entregando sua juventude para cuidar de um lar e ser feliz, como é o sonho de toda mulher. E pagou um preço muito caro por isso e que, talvez fosse melhor não ter tido filhos, ou então, que tivesse ido para um convento e se tornado freira. E eu ali, assistindo tudo e chorando muito, pensei em me aproximar dela, para abraçá-la, mas tive medo. Se ela amava mais o filho morto, poderia zangar-se comigo.
Mas se eu pudesse, provaria o meu grande amor por ela, ressuscitando o Orgel e ficando no lugar dele e quem sabe, minha mãe não sofreria tanto assim. Mas quem somos nós diante da morte, se ela faz parte da vida? Certa vez, Jesus falou aos que lhe perguntaram sobre o estado dos mortos, dizendo que a morte é na verdade “…um sono” (João 11.11) e sendo assim, havemos então de um dia, despertar. É a Ressurreição prometida no último dia. Mas o Salvador poderia fazer o Orgel acordar nesse momento, pois como pode ter Ele poder sobre os que dormem e ficar indiferente diante de todo esse episódio, vendo o sofrimento desta tão triste mãe? Levantar um morto, é um milagre bem fácil para o Senhor Deus, como é para nós ajuntar uma folha de papel no chão.
E foi aí também que, observando a dor de meu pai, é que notei que, aquele velho homem que me deu a vida e me fez o seu filho, não era um super-homem como eu imaginava. Meu pai, ferroviário, trabalhador e que não faltava o seu serviço, sustentava nossa família com o suor de seu rosto, nos trazendo sempre a esperança de termos um novo dia com fartura, era na realidade tão fraco e vulnerável, quanto uma criança. E minha mãe, poderosa dentro de nosso lar, ditando ordens para que crescêssemos em perfeita harmonia, cuidadosa, respeitando horários para as refeições, escola dos filhos, casa e roupas limpas, sarando as nossas dores quando nos machucávamos, contando historinhas com finais felizes, alegrando a nossa moradia cantando as suas canções antigas, como “Tahí,” de Carmem Miranda, “Sertaneja,” de Nelson Gonçalves, “Bandeira Branca,” de Dalva de Oliveira e outras que eu sempre escutava, agora estava ali com a dor de uma perda irreparável e sem forças, indefesa a ponto de não mais se ver nela, aquele brilho radiante de uma mãe forte, elegante que sabia vestir-se bem e que adorava ouvir Carlos Gardel e o seu tango preferido, “La Cumparsita.” Percebi que meus pais, não eram nada, não eram super-heróis, como imaginei que fossem e nem tão pouco, podiam me proteger de algum perigo. Com isso, passei a sentir-me inseguro na vida que levaria à partir dali e temer que a mesma morte maldita que tirou o Orgel de nós, igualmente tentasse contra a vida de meus familiares que ficaram comigo.
O meu irmão mais velho, possui dezenas de amigos na vila em que a gente mora e ele era o líder deles, pois tem uma espécie de gangue e costumam ficar na noite, conversando e agitando com muita rebeldia, por aí, em lugares incertos. Não eram muito violentos, mas as pessoas tinham medo, acreditando que se tratavam de marginais. Na realidade são um bando de filhinhos de papai que não precisam ou não querem trabalhar. E agora fico olhando para esse meu irmão, conhecido pela alcunha de “Jesus Cristo, ” chefe da turma, que chorava junto com os amigos seus, da referida gangue e fico indagando: meu irmão temido por muitos, acostumado a brigar em bares do centro, com gangues rivais e algumas vezes, preso, penso agora, por que não foi com a sua turma ao CTG Osório Porto e retirasse o Orgel daquele lugar, nem que para isso fosse preciso usar de violência, como eram acostumados a fazerem? E foi aí que senti que meu irmão também não era de nada, só tinha fama. Poderia ter salvo o nosso irmão da morte, mas não o fez. E por quê? Porque nos finais de semana, sumia, ao invés de ficar conosco, sua família. Os amigos existem e é bom tê-los, mas servem só para tirar nossos irmãos de casa. Se esse chefe da gangue, tivesse ficado junto conosco, seus pais e irmãos na noite de sábado, teria visto a aflição da mãe naquela madrugada de domingo e com isso ido ao baile para buscar o Orgel e o trazido para casa, com toda a autoridade de um irmão mais velho, que tem o dever de cuidar dos mais jovens da família. Pensei em falar para ele de que nada adiantava liderar uma gangue, ser respeitado por causa disso, se não usou desse poder para termos o nosso alemão que faleceu, junto de nós, evitando todo esse sofrimento. Mas novamente o medo e então me calei. Além disso meu irmão mais velho era mau para nós crianças, em casa e seu olhar nunca foi de amor. Ele é batizado numa igreja evangélica, mas há muito tempo está desviado dos caminhos do Senhor Jesus e conhecendo pessoas de seitas malditas, passou a envolver-se, junto à minha irmã, em feitiçarias, adorando deuses falsos, em lugares que usam de palavras doces e até falam no amor de Deus, mas na verdade é uma armadilha, pois o bem vem somente de Jesus, nas igrejas onde se reunem os que temem a Deus, sem usar nomes de orixás e outros demônios, tipo de atitude que na verdade só serve para fazer o mal ao seu semelhante, sendo algo abominável e muito revoltante para Deus (Levítico 19.31), merecedor de condenação para quem é participante disso. Porém eu o amava do mesmo jeito e torcia para que ele sempre voltasse para casa, depois de sair e fazer arruaças por aí.
Enfim, meus pensamentos foram interrompidos, nesse momento, levados para longe de mim, pelo vento que uiva nas coroas de flores desse longínquo cemitério, pois era preciso prestar atenção nos últimos momentos. Agora o corpo do Orgel já estava sendo sepultado e não mais adiantava chorar. Meu irmão que brincava de morto, estava realmente morto, álgido, rígido e fechado dentro de um esquife, enterrado no interior de um túmulo misterioso que o guardará ali até o dia em que ele novamente se levantará, segundo promessas do Senhor Jesus. Mas como confortar minha mãe? De que modo ir para casa, agora? A chuva tinha parado e o sol apareceu declinando no horizonte deitando-se por trás de algumas árvores distantes, mandando seus últimos raios de luz como reflexo de ouro, brilharem dentro da futura casa do Orgel, enquanto o meu cunhado e meu irmão adolescente, sepultavam o caixão para ali ficar na eternidade, nesse dia angustiante, esgueirando nossa felicidade para sempre. Mas o sol como que cansado e querendo dormir, pois a tarde ia morrendo e trazendo o frio congelante, foi-se pondo depressa e logo tínhamos que voltar para casa e entendo que o brilho do sol, que foram apenas por alguns instantes, diretamente sobre o cadáver frio que nos fazia sofrer tanto, foi certamente para dizer que “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmos 30.5) e isso significava que iríamos vencer aquela dor e nos conformar com a morte prematura de um lindo jovem. Era só uma questão de tempo. Mas como? Não é por acaso o tempo nosso maior inimigo, que nos envelhece e acaba nos matando? Então, como o tempo vai nos fazer aceitar com submissão esse trágico e inesperado falecimento? Essa época, com veracidade, em período algum chegará para nós. É uma ferida que jamais cicatrizará e o pior, vai sempre doer.
Naquele momento alguns pássaros “Quero-Quero” sobrevoavam o cemitério ao passo que, soltavam em gritos, suas notas sonoras que reboavam pelo longo céu cinzento, assistindo eles como retardados e curiosos, ecoando ao longe uma cantiga fúnebre, os seus últimos ecos em suspiros e lágrimas, pesarosos pelo jovem morto e eu conseguia sentir essa impressão triste e compreendi que essas aves, choravam.
Enquanto isso, eu calado e com minha mente agitada de pensamentos: oh, meu querido irmão Orgel, como deixar você aí, sozinho? Que dó, meu Deus, ele precisa de proteção, não se deixa um ser humano assim, como se fosse um animal. E se ele chorar de medo deste horrível lugar? A chuva poderá molhá-lo e deixá-lo doente. Mãe, por que abandona ele aí? Acorda Orgel, não vê que estão te deixando inerte, sob a luz fraca e triste do sol, que aos poucos vai se apagando, dando lugar a noite feia? Irmão acorda e veja como tu tens um brilho vivo de sua juventude e que com certeza se acharás lindo. Saia desta viagem triste onde geme o vento nas coroas de flores como uma canção para os que aí ficam no esquecimento. Veja nossa mãe que com sua voz piedosa costumava chamar-lhe de “soneca” e que agora já saudosa, murmuras palavras de sofrimento, soluçando desde já a sua solidão, enquanto a levam abraçada ao lado dos que também choram juntos. Acorda, já vem o cair da noite fria e estamos indo embora, ficarás sozinho nessa tamanha noite, habitando o seu novo lar, com o orvalho chorando sobre o túmulo empoeirado e embarrado pela chuva fina, falando a sós com Deus, acompanhado somente pelo rumor da brisa uivante do vento, entre os túmulos. Meu querido irmão Orgelzinho, acorde, acorde. Que seja leve o teu sono, na Região do Silêncio.
A volta para casa. Quando voltávamos daquela cidade fantasma, longe, arrepiante e que não precisaria existir, novamente fiquei ao lado de minha mãe no mesmo carro que tínhamos ido e o meu irmão que foi com a gente, agora não estava junto, era preciso alguém ficar um pouquinho mais com o Orgel antes de largá-lo naquelas condições, num sono que não se acorda. E a pobre filha de Deus continuava chorando por saber que o filho amado, ficou lá sozinho, para sempre. O filho mais querido e protegido, iria ficar longe de seus braços e dos carinhos que só uma mãe sabe fazer e eu também sabia disso. Eu tinha conhecimento de que nada adiantaria eu dizer a ela que a amava e que estava ali, vivo ao seu lado, pois talvez, com o seu sofrimento, ela nem me notasse. E assim, todos iam voltando para juntos de seus familiares, parentes, amigos, vizinhos, mas nenhum deles voltariam para nossa casa. Só nós realmente sabíamos a dor que estávamos sentindo e dentro do carro, enquanto regressávamos, lembrava detalhadamente de todo o decorrer do velório. Pensava em cada pessoa que se fez presente, enquanto escutava minha mãe dizer que não queria mais viver. Minha tia tentava confortá-la constantemente, dizendo que ela precisava ser forte, haja visto que tinha outros filhos e que destes, tinha eu ainda criança e os meus sobrinhos, mas era em vão as tentativas de consolo. Meu tio nada dizia, enquanto dirigia o seu automóvel, um velho e conservado DKV que tinha um barulho forte em seu motor de carro antigo. O restante da minha família, viam em outros carros que já não precisavam seguir uma fila e também nem se via o horrível carro fúnebre e seus agentes da morte que fazendo mais uma de suas maldades, deixaram o nosso Orgel numa tumba úmida, malcheirosa, sem calor, sem amor e foram-se embora, a procura de outros que igualmente choram. Mas enquanto isso, talvez eu fosse um grande pensador, afinal não descansava minha mente nem por um segundo. Lembrava-me do cemitério e da experiência triste de conhecer um território assustador e o pior, como a mais nova morada de meu querido irmão morto.
Lembrava-me de algumas pessoas sepultadas com seus nomes escritos em suas lápides que eu lera, como proprietárias dessas casas estranhas onde não há um pátio para brincar e nem ao menos, se pode ter um cachorro de estimação. Refletia nas palavras do padre durante a missa, em homenagem póstuma ao filho desta pobre mãe que chora, que ele foi morar muito além das estrelas, no plano espiritual e que vivo está e que não quer nos ver sofrer. Jesus prometeu a Ressurreição e de um novo tempo de Paz, onde “…não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor…” (Apocalipse 21.4). Palavras belas, de conforto e que ajudam muito, pois são declarações bíblicas, portanto verdadeiras. Mas Deus, enquanto essas promessas não acontecem, como voltar para casa e saber que faltará alguém na mesa, na hora das refeições? De que modo ficar sem ouvir a sua voz? Com os meus olhos fechados, vejo aquelas tumbas misteriosas que guardam ali um segredo milenar chamado morte, com o nome de seus donos escritos e em meus ouvidos, ainda ouço o vento frio, produzindo um mal-soante som, nas coroas de flores espalhadas em cada túmulo, como um tipo de música que só se ouve naquele lugar, para aquela população que dorme. Isso tudo estava se tornando um terror para mim e eu não queria pensar nessas coisas, mas não conseguia. E a medida que, quanto mais quilômetros percorríamos, mais próximos de casa ficávamos e eu queria que o carro nunca mais parasse de rodar, ou que como um foguete, voasse para o espaço, para jamais chegarmos em nosso triste e desolado lar.
Olho para minha mãe que não consegue esconder a sua tão terrível dor e como pode chorar tantas lágrimas? Agora meu coração de menino sofredor, bateu forte outra vez, além do arrepio que tomou conta de meu corpo frêmito. É que ao longe avistei os prédios da cidade e isso significava que logo chegaríamos na mais triste casa do mundo, a casa que eu morava com a família mais infeliz do planeta. E a ideia de tudo ter sido uma brincadeira, me voltava a mente. Aposto que quando chegarmos em casa, vai estar lá, sorrindo para nós, o irmão que brincou de morto. Também pode ser um pesadelo, eu devo estar dormindo e sonhando tudo isso. Quero acordar… acordar! Mãe, é só um sonho, quem sabe até, um sonho coletivo, então pare de chorar. Nesse momento, me veio à lembrança, daquele militar que vendeu a arma de fogo, uma bereta preta, calibre 22, para o Orgel. Ele não pôde ir ao velório, mesmo sendo grandes amigos, pois havia uma revolta por parte de nossa família, parentes e amigos próximos, dizendo que esse cara poderia ser o assassino e que provavelmente, se insistisse em ali aparecer, certamente seria morto.
Outros não pensando dessa forma, mas irados por ele ter feito um negócio desse tipo, a um rapaz ainda muito jovem para entender da vida e que resultou no trágico fim de alguém que ainda tinha muito o que viver, que acabara de fazer dezoito anos a apenas três meses e que possivelmente chora onde está, querendo existir no meio de nós, novamente. Você, Orgel, sempre terá vida conosco, além disso, continuará residindo em nossos corações até a sua volta física. Mas há algo que ficou impressionando meus ouvidos: aqueles pássaros chamados “Quero-Quero, ” voavam ainda na minha cabeça, como faziam lá no afastado cemitério, com seus gritos rasgados, me fazendo realmente acreditar que cantavam uma canção fúnebre para que eu nunca mais esquecesse tudo o que se passou até agora e conseguiram, pois já entramos na vila onde moramos e eu continuo lembrando das suas gritarias e que fazem em bandos. Finalmente, o carro passa a trafegar nossa rua e vagarosamente chega a residência em que moramos, manchada de sangue, com suas janelas parecendo olhos tristes que choravam, numa casa que antes tinha um aspecto tão belo e agradável, mas que olhando melhor agora, ficou feia e horrível de se morar, enquanto desse automóvel saíram quatro pessoas tristes sem saber o que dizer, ou fazer: meus tios, junto com a mais derrotada de todas as mães e eu que, em passos incertos e fracos, retornávamos para o reino destruído da Rainha do Lar.
Olho para cima, para as nuvens e penso: acredito que o Senhor Deus, em sua infinita misericórdia, coloca os seus anjos ao redor de um coração materno, sempre que esse se encontra abalado pela dor de uma morte. E creio, sem dúvidas, que minha mãe obteve todo apoio divino que precisou, e a insistente chuva, eram as lágrimas dos anjos de Deus, para nos ajudar a suportar essa terrível separação e sei que tamanha dor e sacrifício, não poderiam ter sido em vão. E por Jesus ter dito que “…não desprezaria nem abominaria a aflição do aflito…” (Salmos 22.24), dava até para perceber anjos voando e chorando, acompanhando minha mãe nessa tão grande dor, para confortá-la, portanto, sabemos que o segundo maior amor do mundo, é a ternura de uma mãe e só vencido pelo sentimento do Criador, que foi quem nos amou primeiro. Oh, minha tão querida mãe que enquanto jovem, solteira, faceira que gostava de dançar nos bailes de Chope, com muita música de bandas de alemão, da cidade de Chapada-RS, onde residiu na colônia antes de casar, embora tenha nascida em Estrela-RS, sonhava em encontrar o seu príncipe encantado e formar uma família cheia de alegria, cuidando de seus filhos, acalentando-os no seu colo quando bebês, limpinhos, cheirando a talco, jamais imaginou o que a triste sina, lhe reservaria. Casou-se conseguindo o que almejava, mas durou pouco a sua felicidade e portanto, passou a fazer parte do “grupo das mães que choram os filhos mortos. ” E enquanto milhões de pensamentos agridem o meu frágil corpo de criança, fiquei parado e só, em frente de casa. Olhei para os lados e tudo era assombroso. As árvores pareciam estar mortas, de uma floresta macabra.
As casas dos vizinhos tinham a aparência de sepulcros, algumas bem antigas, parecidas com aquelas tumbas que presenciei escondendo gente morta. A rua tornou-se feia, suja com lamas da chuva, imunda, ou seriam as muitas lágrimas que caiam do céu? Alguns cães se ouviam ao longe com seus latidos, entoando uivos de desolação, cantando uma canção triste, falando de nós. E ao lado de casa, corria um riacho de águas turvas e malcheirosas, cheio de pedras que se lamentavam caladas, junto aos sapos que, coaxando pedindo mais chuvas, pareciam crianças chorando, entendendo eles, de minha tristeza e da infância que a morte me havia roubado e do terror que, com certeza, ficaria a minha vida, dali por diante e pensando de como seria essa primeira noite, já sentia o medo tocando em mim, acreditando que não dormiria. Alguns poucos vizinhos se aproximavam cabisbaixos, falando calmamente palavras de condolências. O vento frio, as temperaturas baixas, numa noite tão escura, depois de um dia cinzento, reforçavam para aumentar ainda mais o conceito de que a morte é uma prova muito cruel e a única forma de fugir desse transe doloroso, é morrendo, pois “só se morre uma única vez” (Hebreus 9.27). E eu sentia naquele momento difícil para mim, atormentado, o desejo de desaparecer da face da Terra, igualzinho ao meu irmão morto, pois voltar para casa e somente sonhar com o Orgel e não tê-lo junto a nós, com certeza seria impossível suportar. O meu cunhado e meu irmão adolescente permaneceram no cemitério até mais tarde, pois a eles ficou a tarefa de concluírem os serviços necessários, fechando o corpo dentro de uma tumba empoeirada, do jovem encontrado morto no CTG Osório Porto, dando por fim “O Caso Orgel,” pelo menos era para ser assim e os dois que ficaram a sós com o falecido, num lugar tão remoto, sabiam da continuidade muito triste desta história que nunca terá epílogo, tão logo voltassem. Só que o cenário seria outro: a nossa casa, que passaria ter aspecto da “casa da noite eterna, ” mal assombrada.
E ao voltar para o lar-amargo-lar, já tarde da noite, meu irmão contou-nos que, enquanto ele e meu cunhado seguiam até a parada de ônibus existente em frente a Igreja de São João, bem distante do cemitério, ele parava de caminhar, olhava para trás, em direção a mansão escura dos mortos e não conseguia imaginar o ente querido, num lugar êrmo, abandonado. O Orgel que foi sempre rodeado de amigos, agora na mais absoluta solidão, parecia pedir ao meu irmão que não o deixasse lá. Aleluia! Ainda bem que podemos contar com alguém poderoso, que quando chegar o momento, exterminará com a nossa condição de mortal para todo o tempo, porque ver famílias destruídas pela separação que a morte nos causa, é de enlouquecer qualquer um. E agora, sentado em minha cama e me sentindo só, sem mais ninguém em todo o mundo, como se eu tivesse sido jogado em um poço profundo pela própria família e que deste lugar não poderia sair sem ajuda e sentindo falta do amor de minha mãe, pois ela, chorando pelo filho morto, não estava prestando atenção em mim e com isso não mais sentia-me útil para viver, recordo-me que, alguns dias antes do Orgel falecer, ele se portava de um jeito muito estranho. Andava quieto em casa, triste e pouco conversava, não brincava mais comigo e não mais distribuía moedas para meus sobrinhos e eu. Era uma das brincadeiras dele: dáva-nos dinheiro para quem melhor dançasse, ou cantasse. Minha mãe notava essa sua atitude e quando lhe perguntava o que estava acontecendo, ele nada respondia. Na semana em que antecedia a sua morte, o Orgel falou para o pai que lhe daria um presente que o velho jamais esqueceria na vida, aproveitando a oportunidade em que se aproximava o dia dos pais. Lembro-me bem da felicidade de meu pai, pois como um bom gaiteiro, acreditou que o presente seria uma gaita Todeschini vermelha, pois ele já tinha tido uma e vendera. Me criei vendo o meu pai sempre animando com a sua gaita, a nossa casa, os vizinhos, os parentes e até mesmo algumas festas na Igreja São Judas Tadeu, no bairro Luiza e junto de outros gaiteiros, se intitulavam “Os Fingidos da Sanfona.” Por isso, todos pensávamos que essa seria a surpresa: uma gaita vermelha para uma família de colorados. E então, chegou o segundo domingo de Agosto e a espera pelo Orgel que logo deveria chegar num dia de temperatura baixa e chuviscos, dia cinzento e depressivo. Mas não foi assim: um homem estranho se apresentou no portão de nossa casa, vindo talvez de uma nuvem negra de tempestades, com uma notícia ruim trazida lá do inferno e um choro desconsolado de uma pobre mãe e o começo de toda a nossa desgraça… Não haviam presentes e sim algo que não se esperava: meu pai recebe o filho morto, como dádiva.
E assim, daquele velho rosto cansado de cinquenta e seis anos de idade, brotaram lágrimas de pesar, que só um pai consegue sentir nessa hora. Agora a pergunta: Estaria o Orgel se referindo a esse presente que nos daria, para jamais o esquecermos? Um homem também sonha em casar e ter um lar feliz, ao lado da esposa escolhida e nesse caso, meu pai merecia essa punhalada? Fez meu irmão nascer, ajudou em seu crescimento, tornou-o um adulto capaz e depois o filho lhe é roubado pelo destino errante? Seria esse o resultado do sacrifício empregado? Como o Orgel seria tão cruel, a ponto de se suicidar, sem importar-se com a dor da separação que deixaria a todos nós? Nesse momento, fecho os meus olhos úmidos e vejo imagens da missa de corpo presente, também ouço as palavras “para sempre…”do carro fúnebre, tudo tão real que sinto até o cheiro de flores e velas, o velório, cemitério, muitas lágrimas e dor. Esse foi o presente oferecido ao meu pai, pela passagem de seu dia. Não houve um almoço especial e nem se uniram os seus amigos gaiteiros para tocar algum vanerão, marchas, valsas, etc, a não ser para compartilharem da dor sofrida pelo velho homem da Viação Férrea, que só queria ser feliz em seu casamento, nada mais. Percebo, nesse momento, que lágrimas rolam de minhas faces cheias de sardas e choro baixinho para que ninguém veja, pois acostumado a isso, venho já há alguns anos, indefeso, clamando em silêncio por algo que vem me acontecendo, mas que não posso falar.
E agora com mais esse trauma da morte, sinto uma angústia e um aperto em meu peito, como se meu coração quisesse parar de bater, enquanto olho para os móveis rústicos e escuros de nossa casa que pareciam ser feitos da mesma madeira do caixão do Orgel. Minha mãe já está em sua cama e continua em prantos, não se conformando com o filho que ficou distante, pelo filho que ela mais amou. Em nossa casa há várias pessoas e o que fazem elas? Caminham de um lado para outro, como se pudessem trazer o Orgel de volta, mas nada! Somos todos impotentes, é isso que nos tornamos desde que nascemos: incapazes e já derrotados pela morte, por causa do pecado herdado de Adão e Eva. Certamente junto ao Orgel, no sepulcro, ficou também toda a sua família, ou quem diz que continua vivendo, quando se perde alguém amado? Todos os sorrisos que dermos, todas as brincadeiras que fizermos, nada mais terá valor, pois com certeza será tudo falso. E como ficará a minha vida a partir de agora? Perdida, sem saber para onde caminhar! Mãe, por favor, olhe para mim, tenho medo. Olho para todos os lados, vejo a presença do Orgel, é como se o próprio espírito estivesse dentro de nossa casa, talvez nos dizendo que está tudo bem e pedindo para a mãe parar de chorar e agora que ele faltou, o que de mim será? É possível até, que ele esteja chorando igualmente, arrependido e querendo voltar. Cada um tem o seu mistério, o seu sofrer e o Orgel levou para o túmulo o segredo que o abalou, o entristeceu e o matou, deixando-o enterrado para sempre no meu coração, quase sem forças em dar vida ao meu corpo franzino. Quero morrer Orgel, quero ficar contigo!
"Em cumprimento do Mandamento Celestial: "Parábola dos Talentos"
(Mateus 25. 14-30). CUMPRA-SE A PROFECIA.
Um acontecimento real, esquecido pelo tempo e que agora o passado que não pode ser enterrado para sempre...traz de volta.